VIDEOGRAMAS
16 notas sobre o vídeo
Marcelo Kraiser
1. Etimologia16 notas sobre o vídeo
Marcelo Kraiser
Vídeo, o que é isso? A origem da palavra vídeo pode ser um ponto de partida como outro qualquer. Vídeo significa “eu vejo” e, para escapar desde já da armadilha generalista do “quem vê”, vídeo pode ser definido como máquina de ver. No sentido amplo, vídeo funciona como máquina de ver e ouvir, pois vídeo no campo explorado aqui é composto de trilhas, trilhas de imagem e de som, que podem ser combinadas, ajustadas, recombinadas, empacotadas, empilhadas e alteradas.
2. O que há
em um nome
Inventei a
palavra Graphonópticos para nomear meu trabalho audiovisual, nome com jeito
antigo e estranho para a conjunção e processamento dessas trilhas, pelo menos
três: de texto, imagem e de som. Eu falaria em fronteiras se soubesse
exatamente o que são a linguagem, a imagem e o som, e a partir daí, conhecendo
suas jurisdições, exploraria o que sucede entre essas trilhas. Mas ainda estou
tentando saber o que são esses três meios e interessa-me descobrir o que
acontece se combino e descombino trilhas em composições audiovisuais.
3. Alguns exemplos
Sou autor de
videopoemas agrupados sob o título Para teus Olhos (livremente baseado
em Clarice Lispector que aparece agora e não me deixará ao longo desse texto) e
Pequenas Navegações-Cartas de Amor com a artista Paola Rettore. Realizo
Improvisações sonoras com o músico e compositor Marco Scarassatti, às vezes sem
vídeo e outras com vídeos na série de improvisações chamadas Chronophobia.
Vídeo não comparece em Ensaios sobre a Felicidade, recital de poesia
sonora com a performer Mariana Rocha. Mas o espetáculo 10XTorsões com a
bailarina Izabel Stewart gerou um video documentário. Com essa performer também
fui autor de Dobralume, um espetáculo usando videocenários (e outras
máquinas de ver e ouvir analógicas e digitais que construí) e Anjos Laranjas
e Jaburus, uma tragicomédia musical. Como Habitar uma Paisagem Sonora com
a bailarina improvisadora Dudude Herrmann começou como trilha sonora para
performance e gerou um video documentário. Já a exposição Drapetomania com
a poeta Vera Casa Nova e o multiartista Wilson de Avellar usou apenas filmes de
arquivo editados e textos. Além de outros trabalhos solo, com ou sem vídeo.
4.
Procedimento 1
Estragar as
imagens até se tornarem matéria de imagem. Como fazê-las usando o meio
determinista do vídeo, pré-programado pelos padrões da fotografia (a câmera),
pelos softwares de edição da indústria, pelas noções do que deveriam ser
imagens em movimento (história do cinema, da publicidade, da comunicação),
infiltrado até a medula pelo bom senso comum? O vídeo é molengo, não oferece
resistência material como os meios tradicionais do desenho, da pintura, da
escultura, dos instrumentos musicais nos quais se lida com matérias palpáveis e
de resistência variável. Eu não sei o que é o vídeo, preciso usá-lo para descobrir
o que pode ser. Vídeo é somente uma das máquinas de ver possíveis.
5.
Procedimento 2
Não começo
um trabalho por projeto, mas usando rascunhos. Pedaços de textos, imagens,
palavras, acreditando que jamais é possível separá-las inteiramente de seus
contextos, nesses pedaços sempre permanecem resíduos de onde foram retirados, o
que significa que o começo não é casto, é impuro. E como o vídeo não tem
essência nem regras fixas, preciso usar o método da adivinhação, da busca pela
beleza (!), da captura das outras artes e outros meios. O resultado às vezes
parece um filme ruim, uma pintura em movimento e, com trabalho e sorte, parece
até um vídeo.
6. Cercando
o vídeo
Já que vídeo
é uma máquina de ver, como compreendê-lo estando imerso no campo do olhar? Será
possível variar os pontos de vista e pontos de fuga até atingir uma distância
ideal que permita o seu entendimento? Como sitiar o vídeo estando dentro de
seus muros? Eis que ressurge Clarice Lispector para me ajudar.
No livro A
Cidade Sitiada, a personagem central, Lucrécia Neves, é uma moça não muito
inteligente que gostava de festas, cujo trabalho é aprender a ver. A
dificuldade é que a moça está dentro da cidade que pretende sitiar e essa
cidade é o próprio olhar.
Se ao menos
a moça estivesse fora de seus muros. Que minucioso trabalho de paciência o de
cercá-la. De gastar a vida tentando geometricamente assediá-la com cálculos e
engenho para um dia, mesmo decrépita, encontrar a brecha.
Se ao menos
estivesse fora de seus muros.
Mas não
havia como sitiá-la. Lucrécia Neves estava dentro da cidade.1
Para
compreender o vídeo segundo o método lucreciano é preciso uma brecha, mas
talvez não haja tempo nem paciência para aguardar uma vida e a decrepitude.
7. Modos de
ver e pensar complicados
Ainda com
Clarice Lispector, que nunca escreveu sobre o vídeo: “Mesmo o erro era uma
descoberta. Errar fazia-a encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o
lado empoeirado”2 mas nos ensina muito sobre modos de ver. Modos de ver jamais
são neutros já que sempre enovelam os corpos na imanência do mundo. Além do
método lucreciano existem as abordagens erradas nos dois sentidos de erro: não
acerto e movimento vago, incerto. As relações entre os fragmentos que compõem
um vídeo como máquina de ver não são associações nem dissociações aleatórias de
palavras, sons, imagens ou ideias. Os contornos desses fragmentos capturados de
universos diferentes não encaixam naturalmente uns nos outros, pedaços de
contexto de onde vieram aderem a eles. Os softwares de edição são cada
vez mais amigáveis, são programados de acordo com o bom senso e o senso comum
aplicados a imagens e sons. Amaciando os contornos irregulares, o que poderia
ser um quebra cabeças é organizado de modo sensato em linhas de imagem e som
que serão ajustadas e processados até a composição final. É nesse sentido esses
softwares digitais não são sintetizadores no sentido forte do termo –
caso fossem não seria possível distinguir de início o que é som ou imagem nem
em que se tornariam depois de processados. Para ficar só nas imagens, as
chances de erro são eliminadas de início.
E o
pensamento sobre as imagens? Imagens e pensamento sobre as imagens ajustam-se
quase perfeitamente quando não se erra nem se toca o lado empoeirado das
coisas.
Mas se as
imagens antes do pensamento forem mais rápidas que o pensamento, se o erro –
nos dois sentidos da palavra – tocar o lado empoeirado das coisas, as imagens
do pensamento (o que o pensamento acha que é) deixam de ser reflexões amigas da
verdade.
8. Exigência
descabida
É exigir
demais do vídeo que ele toque os erros essenciais da vida? Mudei de assunto
para falar de arte e da vida com iniciais minúsculas. Sem comentários, a longa
citação de Clarice Lispector que evidentemente explica melhor a complicação
anterior: O processo de viver é feito de erros – a maioria essenciais – de
coragem e preguiça, desespero e esperança de vegetativa atenção, de sentimento
constante (não pensamento) que não conduz a nada, não conduz a nada, e de
repente aquilo que se pensou que era “nada” – era o próprio assustador contato
com a tessitura do viver – e esse instante de reconhecimento (igual a uma
revelação) precisa ser recebido com a maior inocência, com a inocência de que
se é feito. O processo é difícil? Mas seria como chamar de difícil o modo
extremamente caprichoso e natural como uma flor é feita. (Mamãe, disse o
menino, o mar está lindo, verde e com azul e com ondas! está todo anaturezado!
todo sem ninguém ter feito ele!) A impaciência enorme (ficar de pé junto da
planta para vê-la crescer e não se vê nada) não é em relação à coisa
propriamente dita, mas à paciência monstruosa que se tem (a planta cresce de
noite). Como se se dissesse: “não suporto um minuto mais ser tão paciente”,
“essa paciência de relojoeiro me enerva”, etc.: é uma impaciente paciência. Mas
o que mais pesa é a paciência vegetativa, boi servindo ao arado.3
9. Plano técnico
Fade in, timeline, render, plug in, audio
envelope, video envelope, Fx, media manager, post edit, cut, import, capture,
resample, marker, take, snap to grid, gamma, lower field, ntsc dv, gaussian,
sample rate, bit deph, bus, quantitize to frame, grouping, merge layers,
chroma, frame, interpolate, wipe, normalize, pan, preview, scroll, snap to,
thumbnail, project, deject, library, track, effect, compression, envelope,
crop, curves, vst, noise gate, reverber, delay, fade out.
10. Nota
curta 1
Vídeo não
possui essência e aceita capturar a pintura, o desenho, a arte sonora, os
clichês de filmes ruins, as repetições tediosas, as neblinas, os contágios, as
técnicas, cut up, pick up, break up. Vilém Flusser
incomodou a fotografia dizendo que aparelho é máquina de brincar
pré-programada. O vídeo também pertence à categoria das caixas pretas da qual a
fotografia é uma espécie de protótipo e exemplo.
11. Nota
curta 2
Poeiras,
grãos e imagem: em certas pinturas, desenhos, fotografia, imagens em movimento,
o tremor das pequenas percepções, da neblina, dos grãos que as compõem, não se
resolvem como imagens nítidas, mesmo quando nelas se pode ler ou ver algo que
represente uma figura, ou que conte uma história. São imagens nas quais se
chega ao limite, não porque se abandona a pintura, o desenho, a fotografia,
mas, como aponta Barthes, é “a própria ideia de obra que é suprimida, para ver
surgir o acontecimento, a felicidade do acaso, a decisão e a indecisão, a
elegância, a dispersão”.4
12. Vídeo,
pensamento e modos de ver
Vídeo pode
ser um aprendizado para ver menos quando se afasta da visão nítida que é
solar e bem ajustada. O olho que vê menos deixa de ser um órgão definido ao
mesmo tempo que o olhar deixa de ser uma função de reconhecimento dos seres e
objetos, para saltar nos intervalos da “descontinuidade que é a vida”5 e dela
captar os signos sensíveis. O olho que vê menos cria armadilhas para capturar
instantes descontínuos que, colocados entre parênteses, desdobram-se germes de
imagens, textos e ideias e esses germes inacabados não consistem de imagens
imponentes, textos formidáveis e ideias perfeitas, mas são misturas de
variáveis independentes, coisas e estados de coisas cujas relações são ainda
potenciais.
Esses
fragmentos de percepções, imagens desconectadas e farrapos de textos não são
“virtuais” em si no sentido de realidade oculta ou mais profunda ou mesmo mais
real que o real substantivo. Virtual aqui é um adjetivo que não se
refere nem a variações ou imitações do que em um determinado momento se pode
ver, falar ou pensar, mas se refere à gênese em um sentido muito preciso: a
variação contínua do passado que esses elementos foram ou poderiam ter sido, os
saltos descontínuos dos encontros entre esses elementos, e os futuros
potenciais de tudo o que pode suceder. E, unindo o que não estava junto,
separando o que não se unia, em um equilíbrio instável na fissura entre a
rigidez do artigo definido O – que identifica o substantivo de maneira
precisa e as séries indeterminadas e imprecisas do um. A partir de agora
não importa o que é o vídeo mas o que podem séries de elementos
heterogêneos visuais, sonoros e pensáveis que se cruzam, entrelaçam ou chocam e
em algum momento compondo um vídeo.
13. Vídeo e desenho
Em um
desenho aquilo que é riscado, escrito, pintado é repassado de modo a sobrar um
rastro do traço, um traço do rastro apagado e rarefeito em velocidades que vão
da catatonia às acelerações bruscas, da resistência ao gesto antes do
pensamento na linha divisória entre o sucesso e o fracasso à espreita, mais
rápido do que o olho calmo e reflexivo poderia apreender. Se olhar é
surpreendido, o pensamento vem depois. Ampliando muito a noção de desenho para
defini-lo como “tudo aquilo que deixa um rastro em um meio” o vídeo poderia ser
um tipo de desenho como rastro luminoso e sonoro em um meio eletrônico? Não sei
essa resposta.
14. Desvio
Definição
provisória de artista: é quem explora os limites de sua própria incompetência.
15.
Desmoronamento
Vídeo pode
ser uma das ferramentas para atrapalhar as certezas das belas artes, das belas
letras e do pensamento legislador sobre as relações entre artes baseados que
são nos ajustes sensatos sempre atrasados com relação ao que de fato acontece?
Pode misturar as inócuas e repetitivas separações entre fazer e refletir? Se a
resposta for afirmativa, o vídeo é uma maneira de resistir. Lembrando o
filósofo Gilles Deleuze, arte é uma das maneiras de resistir contra um mundo do
qual fomos despossuídos, alijados. Resistência contra o mundo regido pela
representação ignóbil, opinião geral, pela interrogação imbecil, pelos ritmos
impostos. E, insiste Deleuze, principalmente, pela vergonha de ser uma pessoa.
16. Elogio
do vídeo
O vídeo
trouxe imensas facilidades para compor sínteses de qualquer coisa com qualquer
outra coisa; com ele é fácil copiar, colar, alterar cores, velocidades,
transparências, unir e separar sons e imagens, pertence, portanto, à família
dos sintetizadores – máquinas baseadas ou não em códigos que geram, combinam ou
controlam elementos quaisquer. Então, eventualmente, acompanha o movimento do
desejo, aqui entendido não como sinônimo de vontade ou algo regido pela falta,
mas como produção. Nesse caso o desejo de vídeo pode ser um bom começo
para se usar esse meio.
(Endnotes)
1. LISPECTOR. A
cidade sitiada, p. 62.
2. LISPECTOR. A
cidade sitiada, p.88.
3. LISPECTOR.
Submissão ao processo em A descoberta do mundo p. 445.
4. BARTHES. A
sabedoria da arte, p. 164-165.
5.
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, p. 44.
“Daí
a um instante a visão da realidade se desfazia, fora apenas um átimo de
segundo, a homogeneidade desaparecia e os olhos se perdiam numa multiplicidade
de tonalidades ainda mais surpreendentes: à visão aguda e instantânea
seguira-se algo mais reconhecível na terra.” (p. 80-81)