AS QUIMERAS DE UM HORIZONTE


AS QUIMERAS DE UM HORIZONTE TRANSVERSAL


Uma geração de artistas jovens decifra o crescimen­to de uma comunidade mundial muito mais próxima através da globalização e de uma rede de comunica­ção dos media, e no fosso entre universal e particu­lar, Media Art e sociedade, encontra um fragmento da realidade.1


Quando nasci a ditadura militar no Brasil havia chegado ao fim, eram os últimos anos da Guerra Fria, a guerra do pós-guerra, e o capitalismo se coroava como fim da história. Proclamava-se o fim das utopias, da arte, do mundo (em filmes-catástrofe). O próprio século se aproximava do fim, depois de ter experimentado duas guerras mundiais e outros tantos conflitos. Crises que colocaram a humanidade à beira das extremidades e ocasionaram dramáticas transformações culturais: anos revolucionários, contraculturais, antropofágicos, beats, transviados, libertários, psicodélicos, feministas, pacifistas, punks, eletrônicos e cibernéticos. No século XX inventamos satélites, computadores, nanotecnologia; inventamos drogas e analgésicos, mas muitos ainda convivem com a dor; inventamos prazeres, saberes, estesias. E seguimos inventando novas artilharias.


Um século, “Era dos Extremos”2, marcado por radicais transformações impulsionadas pela pesquisa científica, produção artística e mobilização popular, termina testemunhando nova revolução das comunicações iniciada pela imprensa alguns séculos atrás: agora todo o planeta está conectado por uma rede telemática. O século despediu-se com o temor do caos apocalíptico informatizado, o bug do milênio3, que gerou uma corrida de pesquisas na área da informática, impulsionando uma revolução tecnológica que caminha a passos largos, introduzindo no cotidiano um ritmo frenético e, muitas vezes, alucinante de experiência com o mundo extremamente mediada pelas máquinas capitalistas: vemos os códigos sociais de produção e trabalho serem substituídos por uma lógica incontestável do dinheiro que reduz o desejo e os corpos, enquanto produção de afetos e sentidos, ao consumo de bens perecíveis. Cada vez mais se impõe a necessidade de criarmos novos paradigmas éticos, estéticos, políticos e científicos para minimizarmos a crueldade dos crescentes conflitos e alimentarmos a crença nas potências empáticas do ser humano.


Na arte, foi o século em que vanguardas e “neovanguardas” conclamaram o corpo como suporte; a potência do conceito; o equilíbrio do mínimo; intervenções em escalas grandiosas compondo geografias; a exacerbação da reprodutibilidade; sonoridades experimentais e ruidosas em seus silêncios. Fomos dos filmes mudos acompanhados de música nos primórdios do cinema à manipulação ao vivo de imagens e sons pelos VJs. Presenciamos a concretização de experiências múltiplas com a imagem e o som. Câmeras de vídeo portáteis ou em aparelhos de telefone celular e ilhas de edição instaladas nos computadores pessoais recriam a realidade sintética e sistematicamente. Com a difusão dessas tecnologias, intensificam-se as experiências com a videoarte, o cinema documental e de invenção, a música eletrônica, as redes de compartilhamento. Da pintura à performance, da escultura à instalação, perspectivas cada vez mais associadas as proposições do contexto contemporâneo de arte e tecnologia: multiplicidade de suportes, mistura de linguagens e influências estéticas, ações coletivas ou colaborativas, proposições contraculturais. Nas redes e nas ruas, os artistas vivenciaram mais um esgotamento econômico do capitalismo, o enfraquecimento do sistema industrial disciplinado, a extenuação dos afetos controlados. Lançaram-se na criação em direção ao precipício das forças que agitam a vitalidade da existência, nos imprevistos e improvisos do acaso, no “devir-outro” dos encontros – novas alteridades, novas afecções, novas empatias.


Ao vislumbrar as relações entre cinema e artes visuais, avista-se um horizonte de quimeras – fabuloso, poético, experimental, inventivo, mobilizador, vital. Para compreender essa paisagem, é preciso lidar com ventos cambiáveis e tentar criar imagens de movimentos invisíveis, processos e subjetividades que compõem a prática desses artistas. Como pensar a autoria de ventos coletivos? Como dar visibilidade para expirações? Como manter o vento correndo em meio à ausência de espaços? Nas trajetórias vividas, a prática, a reflexão e a criação de espaços de discussão, exibição e circulação fazem-se de maneiras distintas, porém em muitos momentos, compartilhadas. Entre centros e eixos, encontros marcam as manifestações desses artistas que trazem como urgência a vida que pulsa ao redor das máquinas. Em meio ao processo de digitalização na produção de imagens, criam-se novos espaços virtuais de atuação e trocas, inconsistentes sem a materialidade dos encontros, conflitos e intervenções nos espaços físicos. Criaram-se novas temporalidades, múltiplas e rápidas na profusão de imagens e, como contraponto a contemplação, as câmeras fixas, as situações óticas e sonoras puras, as fabulações através da montagem, dos arquivos, dos conceitos, a valorização dos processos, das experiências, que podemos vislumbrar como herança cinematográfica. Todos os sentidos são almejados, são possíveis, são desafiados.


A genética moderna do cinema contemporâneo

O cinema contemporâneo já não se interessa pelos extraterrestres da maneira como fez de George (Méliès) à George (Lucas). Multiplicou à potência de pixels os pontos de vista nas narrativas, inaugurados por Porter, musicados pela revolução em Einsentein, extrapolados pelas subjetividades em Godard. Do cinema de um níquel à Hollywood, as narrativas foram sendo desenvolvidas com forte influência de estruturas literárias determinando seus gêneros: drama, musical, comédia, terror, faroeste, policial. Para além dessas narrativas clássicas, a sétima arte foi vislumbrada com bons olhos pelas vanguardas artísticas. Vários movimentos propuseram novos paradigmas cinematográficos, dialogando com propostas estéticas surgidas no campo das artes plásticas. Incorporando influências de movimentos artísticos como surrealismo, impressionismo, cubismo, entre outros, em filmes carregados de experimentalismo e subversão estética, a avant-gard, por exemplo, explorou artifícios formais como diferentes ângulos de enquadramento, abstrações gráficas, contextos poéticos, montagem pautada pelo movimento e pelo ritmo e questionamentos às convenções sociais e à ordem burguesa. Delluc, Gance, Epstein, Buñuel, Man Ray e Duchamp apostavam num cinema sensorial, de fenômenos visuais.


No expressionismo alemão, a razão que afirmava um mundo edificado na mecanização do trabalho foi contraposta com a expressão da subjetividade, de um imaginário fantasioso, distorcido e carregado de dramaticidade, vibrante e alucinado. Impulsionado também por questões sociais e com forte comprometimento político, o neorrealismo fez o caminho oposto, buscando olhar objetivamente para a realidade afim de germinar mudanças. Ao invés de representar, apresentar. Com forte apelo documental, propunha resistir ao fascismo, mostrando o que o poder insiste em esconder: o povo em seu exercício de sobrevivência. A paisagem também se torna protagonista e determinante para apontar os contextos manifestos da vida naquele momento.


Eis que surge uma nova onda, marcada pela juventude, pela irreverência, pela cinefilia. Novamente as subjetividades entram em cena, mas desta vez amorais, erotizadas, transgressoras. A Nouvelle Vague reconhece o aparato cinematográfico e joga com seus clichês visuais através de narrativas não lineares e bastante cerebrais, afirmando um cinema autoral voltado para questões existenciais e que influenciará o cinema independente americano de Warhol e Cassavetes que, aproveitando a popularização da película de 16mm, criam novos modos de produzir com equipes reduzidas e baixo orçamento.


No cinema contemporâneo a percepção do tempo se modifica. A princípio pré-determinada pela duração do filme, a experiência temporal não está mais focada na narrativa, mas no ritmo, na intensidade, na atmosfera, na duração (de cada cena). Há uma ruptura da noção de plano como registro contínuo de um determinado espaço-tempo (ou melhor, uma mudança na sensibilidade desse contínuo). As narrativas rarefeitas sugerem a ausência de um clímax, uma duração contínua e plácida alimenta a expectativa de um acontecimento ou situação porvir. O espaço muitas vezes é apresentado como uma metáfora para o tempo. A sensibilidade do espaço mostra-se como uma experiência tateante. O cinema contemporâneo suscita a ideia de uma estética do fluxo e, seguindo a direção apontada pela arte contemporânea, reposiciona o público na relação com a obra. Estabelecem-se novas estratégias de compartilhamento dos espaços, um acordo invisível entre gesto e espaço, que tem o corpo como fisicalidade e virtualidade.


A cinematografia foi prolífera e deixou uma forte herança estética e técnica que foi prato principal na antropofagia das artes visuais contemporânea. Na contínua mutação da linguagem cinematográfica, um acontecimento determinante é o surgimento do vídeo. Além de um novo status de recepção com a exibição de conteúdos em monitores (da TV ao computador) que modificaram a experiência audiovisual, a televisão vai engolir e regurgitar as experiências cinematográficas em função de comunicar seus reclames publicitários através de imagens que se voltam para a promoção da própria imagem.


A experiência videográfica na arte

Marco da perene mutação das mídias e práticas artísticas, o vídeo suscitou relevantes questões conceituais e práticas entre arte e comunicação com desdobramentos expressivos em uma grande diversidade de pesquisas, catalisadas por espaços alternativos de exibição e práticas híbridas de forma significante nas ações das vanguardas artísticas. O vídeo pode ser pensado sobre três esferas: a indústria do entretenimento associada à TV; a privada ou doméstica (que transforma o espectador também em produtor de conteúdos) e a artística (que incorporou a tecnologia do vídeo desenvolvida para diversos outros fins). No livro A History of Video Art – The Development of Form and Function (2006), Meigh-Andrews pontua sobre as tecnologias que foram apropriadas pelos videoartistas:

[...] o desenvolvimento tecnológico nas áreas afins da televisão broadcast, eletrônicos de consumo, hardwares e softwares de computador, vídeos de vigilância e tecnologias emergentes, como a imagem térmica, a ressonância magnética (MRI), e assim por diante, todos tiveram uma influência sobre o desenvolvimento estético da videoarte.4 [tradução nossa]


Na pesquisa histórica do vídeo como suporte artístico, a discussão das propriedades inerentes ao meio foi o método predominante, não apenas para diferenciá-lo de outras expressões, mas também para apresentar questões especialmente manifestas na arte conceitual, escultura minimal, performance, música de vanguarda, cinema experimental, arte pop, land art, instalações. As primeiras abordagens possuíam um caráter dogmático e emancipador característico do nascimento de novos meios que precisam se afirmar diante de um contexto. Esse caráter se dissipou em inumeráveis trajetórias de interdisciplinaridade e hibridizações nos processos criativos. 


Os artistas pioneiros na utilização do vídeo procuraram fazer afirmações estéticas incorporando avanços dos sistemas de produção de imagem eletrônica e digital em conversas com a ciência e a comunicação. Artistas que produziram no início de 1970 foram atraídos para o meio videográfico por este não ter uma história ou um discurso crítico identificável com os meios artísticos tradicionais. Sua agenda contracultural, subversiva e radical atraiu muitos criadores.


O vídeo chegou ao Brasil logo após os primeiros anos do lançamento comercial da câmera Portapak. Artistas em busca de novos suportes e dinâmicas que subvertiam fronteiras saíram às ruas ampliando as ações de arte pública com projeções ou ainda utilizando a paisagem urbana como território para performances em que o corpo é o meio; criaram instalações e happenings em espaços institucionais e alternativos e se apropriaram de tecnologias industriais de produção de imagens como a fotografia, o xerox, o projetor de slides e o vídeo. As primeiras pesquisas tinham como característica comum documentarem performances ou narrativas simples em que se experimentavam as relações entre corpo e câmera. Posteriormente buscaram-se novas dimensões discursivas da imagem eletrônica, através da sensorialidade em textos, texturas e sonoridades experimentais que reverberaram obras desafiadoras e sem concessões. Na desestruturação da imagem e desintegração das unidades discursivas, ruídos, interferências e distorções do aparato tecnológico colocaram em questão o quão vital as imagens ainda podem ser para além dos repetitivos clichês.


Os artistas que se apropriaram do vídeo exploraram as possibilidades apontadas pela busca das especificidades como nos livros de Arlindo Machado e Philipe Dubois: nada de planos abertos, nem detalhe em canto de tela e a afirmação da superfície tátil e pictórica da imagem videográfica, incrustações, verticalidade etc. Várias gerações de artistas como Hélio Oiticica, Arthur Omar, Paulo Bruscky, Letícia Parente, Sonia Andrade, Rafael França, José Roberto Aguilar, Ana Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Paulo Herkenhoff, Walter Zanini, Cacilda Teixeira Costa, Roberto Sandoval, Otávio Donasci, Eder Santos, Sandra Kogut, Carlos Nader, Lucas Bambozzi, Kiko Goifman, Alexandre Veras, Cao Guimarães, Marcellvs L., Carlosmagno Rodrigues, Dellani Lima, Kika Nicolela, Sérgio Borges, Clarissa Campolina, Pablo Lobato, Cinthia Marcelle, Roberto Bellini, Joacélio Batista, Wagner Morales, Gregorio Graziozi, Erika Fraenkel, Carlo Sansolo, Gustavo Spolidoro, Dirnei Prates, Nelton Pellenz, Luiz e Ricardo Pretti, Marcelo Ikeda, Daniel Lisboa, TV Primavera, Telephone Colorido, entre muitos outros, exploraram as potencialidades técnicas e estéticas dessa mídia.


Na tecnologia de registro e reprodução de imagens do vídeo, gravação e armazenamento audiovisual se traduzem em um código analógico e/ou digital, preservando o material gravado disponível para incontáveis formas de manipulação posterior, “é uma quimera que pode assumir muitos aspectos.”5 Talvez seja essa característica que o fez, de meio técnico, tornar-se elemento estrutural de ações e práticas artísticas, dialogando com diversos movimentos, teorias, avanços tecnológicos, ativismos políticos6, como afirma Meigh-Andrews. Apoiado por programadores de computador, o vídeo tornou-se cada vez mais um instrumento para visualizar narrativas complexas, documentais ou ficcionais. Uma característica técnica marcante do vídeo é a possibilidade de registro e transmissão ao vivo utilizada para performances em tempo real, trazendo a ação passada para o presente, incorporando um comentário e produzindo uma maior estetização7, além de ser dotada de forte apelo documental. Nas transmissões ao vivo o material pode ser editado antes e durante uma ação ou performance. 


O vídeo se aproxima do cinema, também uma arte do tempo. As experiências da videoarte com as narrativas cinematográficas foram significativas e alcançaram o que se chamou de “cinema expandido”. Através de “performances, ações multimídia, projeções múltiplas e a dissecação de todas as realidades do cinema, para refletirem sobre a estrutura do filme”8, alguns artistas exploraram essa relação, rompendo com a forma narrativa linear. Imagens em movimento extremamente lento ou ao contrário, muito acelerado, experimentavam o tempo além da concepção de normal ou cinemático.


As relações entre corpo e máquina foram experimentadas nas pesquisas com a performance, explorando o “corpo como material estético, como superfície de projeção e/ou indicador de estados mentais.”9 Performances em estúdio, em espaços públicos ou em cenários naturais, o diálogo entre a videoarte e a arte corporal explorou o comportamento do corpo físico diante de experiências de desejo, perigo ou dor. As relações entre corpo, câmera e espaço físico exploraram as configurações e representações do corpo na arte e na sociedade.


Com a consolidação do vídeo no circuito artístico, torna-se difícil encontrar uma exposição coletiva sem a presença das imagens videográficas. O digital elevou as possibilidades de armazenamento e manipulação acrescentando a sintetização de efeitos. O caráter documental do vídeo dá lugar a manipulações computadorizadas, o mundo se conecta por meio das redes de comunicação que se tornam cada vez mais velozes, entra em cena a estética de videoclipe e seus padrões visuais de imagens rápidas que incorporam símbolos e metáforas. Tessituras, camadas de significação, corpos presentes ou errantes, silêncios eloquentes, fabulações, a realidade reinventada sem pudores, “metamorfoses do verdadeiro”. “O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser alcançada, encontrada, nem reproduzida, ela deve ser criada.”10


O termo videoarte se enfraquece diante de tantas possibilidades e experiências entre mídias, qualquer denominação parece não alcançar o sentido das experimentações audiovisuais realizadas pelos artistas. Os comentários em relação à TV e ao cinema tornam-se ainda mais irônicos – em meio ao avanço das dinâmicas de globalização, a questão da identidade volta a estar presente na pauta dos artistas. Vemos uma tendência a flertar com o cinema primitivo, moderno e contemporâneo, em enquadramentos de câmera fixa, na situação dispersiva, na coabitação de diferentes imagens, na avalanche de signos, de desejos incompletos, de sentidos amplificados, na errância por um espaço que se traduz em tempo ou ainda na tomada de consciência dos clichês. Artistas exploram diferentes níveis de narrativas, diluem ficção e realidade e extrapolam os limites do documentário. A vocação do cinema para as mudanças de lugar, o desejo dos autores de limitar, suprimir ou desfazer a unidade de ação, os momentos em que lidam com o improviso e com a relação intransigente entre presente vivo e presente narrado, os obstáculos encontrados pela câmera, que são também meios indispensáveis de criação de novos dispositivos, modificaram a relação com a imagem de diversas formas. 


E a videoarte incorporou e criou novas relações que continuam a atirar as imagens “no esvaziamento da estrutura, no desconforto dos tênues ligamentos da ‘coisa’ enunciada.”11


Artes da imagem e do som em Minas Gerais

A não ser que se desconsidere grande número de pesquisas que não se enquadram em uma única estética ou em um paradigma, pode-se afirmar que não existe uma escola mineira do vídeo. Vários são os artistas que fazem diversas experimentações, das animações à videopoesia, do documentário ao videoclipe – claras opções pelo desconhecido, pelo acaso, pelo improviso, por colocar o controle em risco. Com Humberto Mauro, Carlos Alberto Prates e Eder Santos aprendemos as potências da imagem em movimento e sua plasticidade, dos movimentos de câmera aos tratamentos na pós-produção. Cada trabalho é uma nova jornada que guarda descobertas e profundidades, seja na planura das telas ou na amplidão das projeções. Aprendemos que o importante não é o suporte ou o codec, mas o que se afirma na imagem que se apresenta. Na profundidade dos abismos ou no topo das montanhas, as experiências mineiras com o vídeo e outros campos das artes visuais foram híbridas, flexíveis e capazes de criar diferentes estratégias e perspectivas cartográficas, com reverberações em territórios mundiais. A fronteira não é cerca, mas cruzamentos, costuras e percursos que se encontram e se bifurcam. O vídeo, para além das linhas, pixels e bits, mostra-se cada vez mais mutável. Conceitos, formas e intertextos exploram inúmeras dimensões de significados em dramaturgias12 próprias.


Ampliamos as dimensões da fala, seja ela literária, biopolítica13, do não entendimento, do corpo, do não lugar, do desvio de significações. Formada por gerações de artistas e pesquisadores do vídeo, que insistiram nas experimentações e estudos dessa matéria plástica e pautados pelo anseio de realização e transformação, as artes da imagem e do som em Minas Gerais se caracterizam pela heterogeneidade, pela experimentação e pela profusão criativa – uma variedade enorme de ideias germinais, processos e estéticas que amadureceram em meio às mudanças, cada vez mais velozes, dos paradigmas culturais, sociais e econômicos no mundo.


Festivais e mostras criados nesse período tiveram um papel fundamental ao criar espaços de exibição e circulação da produção, únicos antes das plataformas de vídeo para internet. Desde a Bienal Internacional de Vídeo de Belo Horizonte – Forum BHZ Vídeo, realizada nos anos 1990, que fomentou o início do circuito de videoarte em Belo Horizonte estimulando a produção local e dando visibilidade a experiências radicais de utilização do vídeo14 – festivais como Mostravídeo Itaú Cultural, INDIE, Fluxus, MUMIA, Cineclube Curta Circuito, arte.mov, FAD, além de mostras ligadas a universidades e iniciativas individuais, exibiram diversas curadorias de vídeos contemporâneos e clássicos de Minas, do Brasil e de outros países formando novos olhares e novos realizadores. A experiência dos anos 90 alimentou conceitual e formalmente a “geração digital”. Rodrigo Minelli, videoartista, pesquisador, um dos criadores do grupo feitoamãos / F.A.Q. e um dos idealizadores do Festival de Arte em Mídias Móveis (arte.mov), afirma15 que, com a difusão das tecnologias digitais, os artistas foram adquirindo maior autonomia para mais experimentações e, inclusive, para fomentar a produção da nova geração que se formava nos festivais, oficinas e escolas. Muitas pesquisas conduziram a produções que não tinham um circuito de exibição (vídeo de celular e interfaces com outros dispositivos tecnológicos, por exemplo) e vários espaços foram criados para exibir a produção que surgia.


Em cada palavra, gesto ou som que atravessa a imagem audiovisual, a busca por afetar o mundo, seja na potência íntima, poética e transgressora, dos vídeos de Carlosmagno Rodrigues e Dellani Lima; no caos, feminino e político de Cinthia Marcelle e Sara Ramo; na mitologia militante e experimental de Sávio Leite; na poesia cotidiana e familiar de Joacélio Batista e Alex Lindolfo; nas imagens jogadas à lama por Marcelo Kraiser; no jogo de palavras de Alexandre Milagres; na dimensão espacial e multissensorial de Henrique Roscoe e do feitoamãos/F.A.Q.; no desafio às autoridades do olhar de Roberto Bellini; no afeto e na cocriação de Igor Amin; nas memórias migrantes de Marília Rocha; nas notas flanantes de Clarissa Campolina; nas expirações de Pablo Lobato; nas temporalidades de Marcellvs L.; nos corpos mobilizados ao encontro pelas ações do CEIA; nas provocações ao cotidiano da cidade realizadas pelo PORO.


Nessa estrada, vereda de memórias e deslocamentos que renovam o olhar, imagens como devaneios, como perambulação, como exercício poético de mostrar os caminhos percorridos, de se perder para se encontrar, compartilhar vias já andadas, marcar pontos de convergência, revelam-se poéticas dos espaços interiores, da casa, do sujeito, da intimidade, da afirmação do corpo como pluralidade de formas e desejos: falar de si para falar do mundo. Imagens familiares, do quintal, da cozinha, do quarto, dos amigos, dos afetos. Imagens que discutem as estruturas de representação, a construção de clichês, que buscam dar novo significado a objetos e ações do cotidiano em artesanias semióticas, em reconfigurações dos espaços, lugares e olhares. Imagens como águas que simbolizam uma infinidade de possíveis, que contém todo o virtual, todo o informal, todo o germinal e todas as ameaças de reabsorção. Manifestação livre e desimpedida, imagens que correm segundo o declive do terreno, ou que se modificam segundo a superfície de projeção ou a flutuação dos sentidos.


Entremeando conhecimentos diversos, os artistas contemporâneos, aqui representados por 19 criadores, não têm limites ao pensar a forma de apresentar suas questões através de experiências que ultrapassam imagens e sons, rompem fronteiras, pulam cercas, derrubam muros e sobem em paredes. Nos fluxos das práticas do pensamento estruturaram-se complexos entrecruzamentos criativos. Poesia, abstrações gráficas, ficções do real e resistência política marcam essa produção que se caracteriza, sobretudo, por misturar as regras nesse “jogo entre todos os homens de todas as épocas.”16


(Endnotes)


1. MARTIN, 2006, p. 25.
2. HOBSBAWM, 1995.
3. Na década de 1960, cada byte de memória economizado significava também economia de dinheiro; vários foram os hardwares e softwares que adotaram padrões com formas re­duzidas de armazenamento. As datas em alguns sistemas antigos eram armazenadas com apenas dois dígitos para indicar o ano. Na virada do ano 2000, temeu-se que um possível erro de lógica fizesse os computadores retrocederem 100 anos – ao invés de registrar a passagem para 2000, retornariam para 1900, causando grandes complicações. Houve um forte investimento para corrigir essas programações e o bug do milênio não passou de um episódio de alarmismo apocalíptico.
4. MEIGH-ANDREWS, 2006, p. 21.
“[...] technological development in related areas of broadcast television, consumer elec­tronics, hardware and computer software, video surveillance and emerging technologies such as thermal imaging, magnetic resonance imaging (MRI), and so on, all had an influen­ce on the aesthetic development of video art.”
5. MARTIN, 2006, p. 6.
6. MEIGH-ANDREWS, 2006, p. 9.
7. MARTIN, 2006.
8. MARTIN, 2006, p. 54.
9. MARTIN, 2006, p. 6.
10. DELEUZE, 2007, p. 178. Em Cinema II: Imagem-Tempo, Deleuze aborda a potência do falso, na qual a vontade decisória se liberta das aparências e da verdade para reafirmar-se como potên­cia criadora.
11. AZZI, [2010], p. 4. http://www.artemov.net/revista.php?idRevistaEdicao=10&page=4
12 . Aqui entendida como a articulação de conflitos entre imagens, sons e ideias na justa­posição da montagem.
13. “O próprio poder se tornou pós-moderno. Isto é, ondulante, acentrado (sem centro), em rede, reticulado, molecular. Com isso, o poder, nessa sua forma mais molecular, incide diretamente sobre as nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar.” PELBART, 2007, p.57.
14. BAMBOZZI, 2008. http://www.lucasbambozzi.net/index.php/textos-articles/o-video-explodido-e-seus-es­tilhacos-pairando-sobre-nos
15 . MINELLI, 2011.
16. FILIPOVIC, 2008, p. 175.52 53 54 55 56 57