AS QUIMERAS DE UM HORIZONTE TRANSVERSAL
Uma geração de artistas jovens decifra o crescimento de uma
comunidade mundial muito mais próxima através da globalização e de uma rede de
comunicação dos media, e no fosso entre universal e particular, Media Art e
sociedade, encontra um fragmento da realidade.1
Quando nasci
a ditadura militar no Brasil havia chegado ao fim, eram os últimos anos da
Guerra Fria, a guerra do pós-guerra, e o capitalismo se coroava como fim da
história. Proclamava-se o fim das utopias, da arte, do mundo (em
filmes-catástrofe). O próprio século se aproximava do fim, depois de ter
experimentado duas guerras mundiais e outros tantos conflitos. Crises que
colocaram a humanidade à beira das extremidades e ocasionaram dramáticas
transformações culturais: anos revolucionários, contraculturais,
antropofágicos, beats, transviados, libertários, psicodélicos, feministas,
pacifistas, punks, eletrônicos e cibernéticos. No século XX inventamos
satélites, computadores, nanotecnologia; inventamos drogas e analgésicos, mas
muitos ainda convivem com a dor; inventamos prazeres, saberes, estesias. E
seguimos inventando novas artilharias.
Um século, “Era
dos Extremos”2, marcado por radicais transformações impulsionadas
pela pesquisa científica, produção artística e mobilização popular, termina
testemunhando nova revolução das comunicações iniciada pela imprensa alguns
séculos atrás: agora todo o planeta está conectado por uma rede telemática. O
século despediu-se com o temor do caos apocalíptico informatizado, o bug do
milênio3, que gerou uma corrida de pesquisas na área da informática,
impulsionando uma revolução tecnológica que caminha a passos largos,
introduzindo no cotidiano um ritmo frenético e, muitas vezes, alucinante de
experiência com o mundo extremamente mediada pelas máquinas capitalistas: vemos
os códigos sociais de produção e trabalho serem substituídos por uma lógica
incontestável do dinheiro que reduz o desejo e os corpos, enquanto produção de
afetos e sentidos, ao consumo de bens perecíveis. Cada vez mais se impõe a
necessidade de criarmos novos paradigmas éticos, estéticos, políticos e
científicos para minimizarmos a crueldade dos crescentes conflitos e
alimentarmos a crença nas potências empáticas do ser humano.
Na arte, foi
o século em que vanguardas e “neovanguardas” conclamaram o corpo como suporte;
a potência do conceito; o equilíbrio do mínimo; intervenções em escalas
grandiosas compondo geografias; a exacerbação da reprodutibilidade; sonoridades
experimentais e ruidosas em seus silêncios. Fomos dos filmes mudos acompanhados
de música nos primórdios do cinema à manipulação ao vivo de imagens e sons pelos
VJs. Presenciamos a concretização de experiências múltiplas com a imagem e o
som. Câmeras de vídeo portáteis ou em aparelhos de telefone celular e ilhas de
edição instaladas nos computadores pessoais recriam a realidade sintética e
sistematicamente. Com a difusão dessas tecnologias, intensificam-se as
experiências com a videoarte, o cinema documental e de invenção, a música
eletrônica, as redes de compartilhamento. Da pintura à performance, da
escultura à instalação, perspectivas cada vez mais associadas as proposições do
contexto contemporâneo de arte e tecnologia: multiplicidade de suportes,
mistura de linguagens e influências estéticas, ações coletivas ou
colaborativas, proposições contraculturais. Nas redes e nas ruas, os artistas
vivenciaram mais um esgotamento econômico do capitalismo, o enfraquecimento do
sistema industrial disciplinado, a extenuação dos afetos controlados.
Lançaram-se na criação em direção ao precipício das forças que agitam a
vitalidade da existência, nos imprevistos e improvisos do acaso, no
“devir-outro” dos encontros – novas alteridades, novas afecções, novas
empatias.
Ao
vislumbrar as relações entre cinema e artes visuais, avista-se um horizonte de
quimeras – fabuloso, poético, experimental, inventivo, mobilizador, vital. Para
compreender essa paisagem, é preciso lidar com ventos cambiáveis e tentar criar
imagens de movimentos invisíveis, processos e subjetividades que compõem a
prática desses artistas. Como pensar a autoria de ventos coletivos? Como dar
visibilidade para expirações? Como manter o vento correndo em meio à ausência
de espaços? Nas trajetórias vividas, a prática, a reflexão e a criação de
espaços de discussão, exibição e circulação fazem-se de maneiras distintas,
porém em muitos momentos, compartilhadas. Entre centros e eixos, encontros
marcam as manifestações desses artistas que trazem como urgência a vida que
pulsa ao redor das máquinas. Em meio ao processo de digitalização na produção
de imagens, criam-se novos espaços virtuais de atuação e trocas, inconsistentes
sem a materialidade dos encontros, conflitos e intervenções nos espaços
físicos. Criaram-se novas temporalidades, múltiplas e rápidas na profusão de
imagens e, como contraponto a contemplação, as câmeras fixas, as situações
óticas e sonoras puras, as fabulações através da montagem, dos arquivos, dos
conceitos, a valorização dos processos, das experiências, que podemos
vislumbrar como herança cinematográfica. Todos os sentidos são almejados, são
possíveis, são desafiados.
A genética
moderna do cinema contemporâneo
O cinema
contemporâneo já não se interessa pelos extraterrestres da maneira como fez de
George (Méliès) à George (Lucas). Multiplicou à potência de pixels os
pontos de vista nas narrativas, inaugurados por Porter, musicados pela
revolução em Einsentein, extrapolados pelas subjetividades em Godard. Do cinema
de um níquel à Hollywood, as narrativas foram sendo desenvolvidas com forte
influência de estruturas literárias determinando seus gêneros: drama, musical,
comédia, terror, faroeste, policial. Para além dessas narrativas clássicas, a
sétima arte foi vislumbrada com bons olhos pelas vanguardas artísticas. Vários
movimentos propuseram novos paradigmas cinematográficos, dialogando com
propostas estéticas surgidas no campo das artes plásticas. Incorporando
influências de movimentos artísticos como surrealismo, impressionismo, cubismo,
entre outros, em filmes carregados de experimentalismo e subversão estética, a avant-gard,
por exemplo, explorou artifícios formais como diferentes ângulos de enquadramento,
abstrações gráficas, contextos poéticos, montagem pautada pelo movimento e pelo
ritmo e questionamentos às convenções sociais e à ordem burguesa. Delluc,
Gance, Epstein, Buñuel, Man Ray e Duchamp apostavam num cinema sensorial, de
fenômenos visuais.
No
expressionismo alemão, a razão que afirmava um mundo edificado na mecanização
do trabalho foi contraposta com a expressão da subjetividade, de um imaginário
fantasioso, distorcido e carregado de dramaticidade, vibrante e alucinado.
Impulsionado também por questões sociais e com forte comprometimento político,
o neorrealismo fez o caminho oposto, buscando olhar objetivamente para a
realidade afim de germinar mudanças. Ao invés de representar, apresentar. Com
forte apelo documental, propunha resistir ao fascismo, mostrando o que o poder
insiste em esconder: o povo em seu exercício de sobrevivência. A paisagem
também se torna protagonista e determinante para apontar os contextos
manifestos da vida naquele momento.
Eis que
surge uma nova onda, marcada pela juventude, pela irreverência, pela cinefilia.
Novamente as subjetividades entram em cena, mas desta vez amorais, erotizadas,
transgressoras. A Nouvelle Vague reconhece o aparato cinematográfico e
joga com seus clichês visuais através de narrativas não lineares e bastante
cerebrais, afirmando um cinema autoral voltado para questões existenciais e que
influenciará o cinema independente americano de Warhol e Cassavetes que,
aproveitando a popularização da película de 16mm, criam novos modos de produzir
com equipes reduzidas e baixo orçamento.
No cinema
contemporâneo a percepção do tempo se modifica. A princípio pré-determinada
pela duração do filme, a experiência temporal não está mais focada na
narrativa, mas no ritmo, na intensidade, na atmosfera, na duração (de cada
cena). Há uma ruptura da noção de plano como registro contínuo de um
determinado espaço-tempo (ou melhor, uma mudança na sensibilidade desse
contínuo). As narrativas rarefeitas sugerem a ausência de um clímax, uma
duração contínua e plácida alimenta a expectativa de um acontecimento ou
situação porvir. O espaço muitas vezes é apresentado como uma metáfora para o
tempo. A sensibilidade do espaço mostra-se como uma experiência tateante. O
cinema contemporâneo suscita a ideia de uma estética do fluxo e, seguindo a
direção apontada pela arte contemporânea, reposiciona o público na relação com
a obra. Estabelecem-se novas estratégias de compartilhamento dos espaços, um
acordo invisível entre gesto e espaço, que tem o corpo como fisicalidade e
virtualidade.
A
cinematografia foi prolífera e deixou uma forte herança estética e técnica que
foi prato principal na antropofagia das artes visuais contemporânea. Na
contínua mutação da linguagem cinematográfica, um acontecimento determinante é
o surgimento do vídeo. Além de um novo status de recepção com a exibição de
conteúdos em monitores (da TV ao computador) que modificaram a experiência
audiovisual, a televisão vai engolir e regurgitar as experiências
cinematográficas em função de comunicar seus reclames publicitários através de
imagens que se voltam para a promoção da própria imagem.
A
experiência videográfica na arte
Marco da
perene mutação das mídias e práticas artísticas, o vídeo suscitou relevantes
questões conceituais e práticas entre arte e comunicação com desdobramentos
expressivos em uma grande diversidade de pesquisas, catalisadas por espaços
alternativos de exibição e práticas híbridas de forma significante nas ações
das vanguardas artísticas. O vídeo pode ser pensado sobre três esferas: a
indústria do entretenimento associada à TV; a privada ou doméstica (que
transforma o espectador também em produtor de conteúdos) e a artística (que
incorporou a tecnologia do vídeo desenvolvida para diversos outros fins). No
livro A History of Video Art – The Development of Form and Function (2006),
Meigh-Andrews pontua sobre as tecnologias que foram apropriadas pelos
videoartistas:
[...] o desenvolvimento tecnológico nas áreas afins da televisão
broadcast, eletrônicos de consumo, hardwares e softwares de computador, vídeos
de vigilância e tecnologias emergentes, como a imagem térmica, a ressonância
magnética (MRI), e assim por diante, todos tiveram uma influência sobre o
desenvolvimento estético da videoarte.4 [tradução
nossa]
Na pesquisa
histórica do vídeo como suporte artístico, a discussão das propriedades
inerentes ao meio foi o método predominante, não apenas para diferenciá-lo de
outras expressões, mas também para apresentar questões especialmente manifestas
na arte conceitual, escultura minimal, performance, música de vanguarda, cinema
experimental, arte pop, land art, instalações. As primeiras
abordagens possuíam um caráter dogmático e emancipador característico do
nascimento de novos meios que precisam se afirmar diante de um contexto. Esse
caráter se dissipou em inumeráveis trajetórias de interdisciplinaridade e
hibridizações nos processos criativos.
Os artistas
pioneiros na utilização do vídeo procuraram fazer afirmações estéticas
incorporando avanços dos sistemas de produção de imagem eletrônica e digital em
conversas com a ciência e a comunicação. Artistas que produziram no início de
1970 foram atraídos para o meio videográfico por este não ter uma história ou
um discurso crítico identificável com os meios artísticos tradicionais. Sua
agenda contracultural, subversiva e radical atraiu muitos criadores.
O vídeo
chegou ao Brasil logo após os primeiros anos do lançamento comercial da câmera
Portapak. Artistas em busca de novos suportes e dinâmicas que subvertiam
fronteiras saíram às ruas ampliando as ações de arte pública com projeções ou
ainda utilizando a paisagem urbana como território para performances em que o
corpo é o meio; criaram instalações e happenings em espaços
institucionais e alternativos e se apropriaram de tecnologias industriais de
produção de imagens como a fotografia, o xerox, o projetor de slides e o
vídeo. As primeiras pesquisas tinham como característica comum documentarem
performances ou narrativas simples em que se experimentavam as relações entre
corpo e câmera. Posteriormente buscaram-se novas dimensões discursivas da
imagem eletrônica, através da sensorialidade em textos, texturas e sonoridades
experimentais que reverberaram obras desafiadoras e sem concessões. Na
desestruturação da imagem e desintegração das unidades discursivas, ruídos,
interferências e distorções do aparato tecnológico colocaram em questão o quão
vital as imagens ainda podem ser para além dos repetitivos clichês.
Os artistas
que se apropriaram do vídeo exploraram as possibilidades apontadas pela busca
das especificidades como nos livros de Arlindo Machado e Philipe Dubois: nada
de planos abertos, nem detalhe em canto de tela e a afirmação da superfície
tátil e pictórica da imagem videográfica, incrustações, verticalidade etc.
Várias gerações de artistas como Hélio Oiticica, Arthur Omar, Paulo Bruscky,
Letícia Parente, Sonia Andrade, Rafael França, José Roberto Aguilar, Ana Bella
Geiger, Fernando Cocchiarale, Paulo Herkenhoff, Walter Zanini, Cacilda Teixeira
Costa, Roberto Sandoval, Otávio Donasci, Eder Santos, Sandra Kogut, Carlos
Nader, Lucas Bambozzi, Kiko Goifman, Alexandre Veras, Cao Guimarães, Marcellvs
L., Carlosmagno Rodrigues, Dellani Lima, Kika Nicolela, Sérgio Borges, Clarissa
Campolina, Pablo Lobato, Cinthia Marcelle, Roberto Bellini, Joacélio Batista,
Wagner Morales, Gregorio Graziozi, Erika Fraenkel, Carlo Sansolo, Gustavo
Spolidoro, Dirnei Prates, Nelton Pellenz, Luiz e Ricardo Pretti, Marcelo Ikeda,
Daniel Lisboa, TV Primavera, Telephone Colorido, entre muitos outros,
exploraram as potencialidades técnicas e estéticas dessa mídia.
Na tecnologia de registro e reprodução de imagens do vídeo, gravação e
armazenamento audiovisual se traduzem em um código analógico e/ou digital,
preservando o material gravado disponível para incontáveis formas de manipulação
posterior, “é uma quimera que pode assumir muitos aspectos.”5 Talvez seja essa
característica que o fez, de meio técnico, tornar-se elemento estrutural de
ações e práticas artísticas, dialogando com diversos movimentos, teorias,
avanços tecnológicos, ativismos políticos6, como afirma Meigh-Andrews. Apoiado
por programadores de computador, o vídeo tornou-se cada vez mais um instrumento
para visualizar narrativas complexas, documentais ou ficcionais. Uma
característica técnica marcante do vídeo é a possibilidade de registro e
transmissão ao vivo utilizada para performances em tempo real, trazendo a ação
passada para o presente, incorporando um comentário e produzindo uma maior
estetização7, além de ser dotada de forte apelo documental. Nas transmissões ao
vivo o material pode ser editado antes e durante uma ação ou performance.
O vídeo se
aproxima do cinema, também uma arte do tempo. As experiências da videoarte com
as narrativas cinematográficas foram significativas e alcançaram o que se
chamou de “cinema expandido”. Através de “performances, ações multimídia,
projeções múltiplas e a dissecação de todas as realidades do cinema, para
refletirem sobre a estrutura do filme”8, alguns artistas exploraram essa
relação, rompendo com a forma narrativa linear. Imagens em movimento
extremamente lento ou ao contrário, muito acelerado, experimentavam o tempo
além da concepção de normal ou cinemático.
As relações
entre corpo e máquina foram experimentadas nas pesquisas com a performance,
explorando o “corpo como material estético, como superfície de projeção e/ou
indicador de estados mentais.”9 Performances em estúdio, em espaços públicos ou
em cenários naturais, o diálogo entre a videoarte e a arte corporal explorou o
comportamento do corpo físico diante de experiências de desejo, perigo ou dor.
As relações entre corpo, câmera e espaço físico exploraram as configurações e
representações do corpo na arte e na sociedade.
Com a
consolidação do vídeo no circuito artístico, torna-se difícil encontrar uma
exposição coletiva sem a presença das imagens videográficas. O digital elevou
as possibilidades de armazenamento e manipulação acrescentando a sintetização
de efeitos. O caráter documental do vídeo dá lugar a manipulações
computadorizadas, o mundo se conecta por meio das redes de comunicação que se
tornam cada vez mais velozes, entra em cena a estética de videoclipe e seus
padrões visuais de imagens rápidas que incorporam símbolos e metáforas.
Tessituras, camadas de significação, corpos presentes ou errantes, silêncios eloquentes,
fabulações, a realidade reinventada sem pudores, “metamorfoses do verdadeiro”.
“O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser
alcançada, encontrada, nem reproduzida, ela deve ser criada.”10
O termo
videoarte se enfraquece diante de tantas possibilidades e experiências entre
mídias, qualquer denominação parece não alcançar o sentido das experimentações
audiovisuais realizadas pelos artistas. Os comentários em relação à TV e ao
cinema tornam-se ainda mais irônicos – em meio ao avanço das dinâmicas de
globalização, a questão da identidade volta a estar presente na pauta dos
artistas. Vemos uma tendência a flertar com o cinema primitivo, moderno e
contemporâneo, em enquadramentos de câmera fixa, na situação dispersiva, na
coabitação de diferentes imagens, na avalanche de signos, de desejos
incompletos, de sentidos amplificados, na errância por um espaço que se traduz
em tempo ou ainda na tomada de consciência dos clichês. Artistas exploram
diferentes níveis de narrativas, diluem ficção e realidade e extrapolam os
limites do documentário. A vocação do cinema para as mudanças de lugar, o
desejo dos autores de limitar, suprimir ou desfazer a unidade de ação, os
momentos em que lidam com o improviso e com a relação intransigente entre presente
vivo e presente narrado, os obstáculos encontrados pela câmera, que são também
meios indispensáveis de criação de novos dispositivos, modificaram a relação
com a imagem de diversas formas.
E a videoarte incorporou e criou novas relações que continuam a atirar
as imagens “no esvaziamento da estrutura, no desconforto dos tênues ligamentos
da ‘coisa’ enunciada.”11
Artes da imagem e do som em Minas Gerais
A não ser
que se desconsidere grande número de pesquisas que não se enquadram em uma
única estética ou em um paradigma, pode-se afirmar que não existe uma escola
mineira do vídeo. Vários são os artistas que fazem diversas experimentações,
das animações à videopoesia, do documentário ao videoclipe – claras opções pelo
desconhecido, pelo acaso, pelo improviso, por colocar o controle em risco. Com
Humberto Mauro, Carlos Alberto Prates e Eder Santos aprendemos as potências da
imagem em movimento e sua plasticidade, dos movimentos de câmera aos
tratamentos na pós-produção. Cada trabalho é uma nova jornada que guarda
descobertas e profundidades, seja na planura das telas ou na amplidão das
projeções. Aprendemos que o importante não é o suporte ou o codec, mas o
que se afirma na imagem que se apresenta. Na profundidade dos abismos ou no
topo das montanhas, as experiências mineiras com o vídeo e outros campos das
artes visuais foram híbridas, flexíveis e capazes de criar diferentes
estratégias e perspectivas cartográficas, com reverberações em territórios
mundiais. A fronteira não é cerca, mas cruzamentos, costuras e percursos que se
encontram e se bifurcam. O vídeo, para além das linhas, pixels e bits,
mostra-se cada vez mais mutável. Conceitos, formas e intertextos exploram
inúmeras dimensões de significados em dramaturgias12 próprias.
Ampliamos as
dimensões da fala, seja ela literária, biopolítica13, do não entendimento, do
corpo, do não lugar, do desvio de significações. Formada por gerações de
artistas e pesquisadores do vídeo, que insistiram nas experimentações e estudos
dessa matéria plástica e pautados pelo anseio de realização e transformação, as
artes da imagem e do som em Minas Gerais se caracterizam pela heterogeneidade,
pela experimentação e pela profusão criativa – uma variedade enorme de ideias
germinais, processos e estéticas que amadureceram em meio às mudanças, cada vez
mais velozes, dos paradigmas culturais, sociais e econômicos no mundo.
Festivais e
mostras criados nesse período tiveram um papel fundamental ao criar espaços de
exibição e circulação da produção, únicos antes das plataformas de vídeo para
internet. Desde a Bienal Internacional de Vídeo de Belo Horizonte – Forum BHZ
Vídeo, realizada nos anos 1990, que fomentou o início do circuito de videoarte
em Belo Horizonte estimulando a produção local e dando visibilidade a
experiências radicais de utilização do vídeo14 – festivais como Mostravídeo
Itaú Cultural, INDIE, Fluxus, MUMIA, Cineclube Curta Circuito, arte.mov,
FAD, além de mostras ligadas a universidades e iniciativas individuais,
exibiram diversas curadorias de vídeos contemporâneos e clássicos de Minas, do
Brasil e de outros países formando novos olhares e novos realizadores. A
experiência dos anos 90 alimentou conceitual e formalmente a “geração digital”.
Rodrigo Minelli, videoartista, pesquisador, um dos criadores do grupo feitoamãos
/ F.A.Q. e um dos idealizadores do Festival de Arte em Mídias Móveis
(arte.mov), afirma15 que, com a difusão das tecnologias digitais, os artistas
foram adquirindo maior autonomia para mais experimentações e, inclusive, para
fomentar a produção da nova geração que se formava nos festivais, oficinas e
escolas. Muitas pesquisas conduziram a produções que não tinham um circuito de
exibição (vídeo de celular e interfaces com outros dispositivos tecnológicos,
por exemplo) e vários espaços foram criados para exibir a produção que surgia.
Em cada
palavra, gesto ou som que atravessa a imagem audiovisual, a busca por afetar o
mundo, seja na potência íntima, poética e transgressora, dos vídeos de
Carlosmagno Rodrigues e Dellani Lima; no caos, feminino e político de Cinthia
Marcelle e Sara Ramo; na mitologia militante e experimental de Sávio Leite; na
poesia cotidiana e familiar de Joacélio Batista e Alex Lindolfo; nas imagens
jogadas à lama por Marcelo Kraiser; no jogo de palavras de Alexandre Milagres;
na dimensão espacial e multissensorial de Henrique Roscoe e do feitoamãos/F.A.Q.;
no desafio às autoridades do olhar de Roberto Bellini; no afeto e na cocriação
de Igor Amin; nas memórias migrantes de Marília Rocha; nas notas flanantes de
Clarissa Campolina; nas expirações de Pablo Lobato; nas temporalidades de
Marcellvs L.; nos corpos mobilizados ao encontro pelas ações do CEIA; nas
provocações ao cotidiano da cidade realizadas pelo PORO.
Nessa
estrada, vereda de memórias e deslocamentos que renovam o olhar, imagens como
devaneios, como perambulação, como exercício poético de mostrar os caminhos
percorridos, de se perder para se encontrar, compartilhar vias já andadas,
marcar pontos de convergência, revelam-se poéticas dos espaços interiores, da
casa, do sujeito, da intimidade, da afirmação do corpo como pluralidade de
formas e desejos: falar de si para falar do mundo. Imagens familiares, do
quintal, da cozinha, do quarto, dos amigos, dos afetos. Imagens que discutem as
estruturas de representação, a construção de clichês, que buscam dar novo
significado a objetos e ações do cotidiano em artesanias semióticas, em
reconfigurações dos espaços, lugares e olhares. Imagens como águas que
simbolizam uma infinidade de possíveis, que contém todo o virtual, todo o
informal, todo o germinal e todas as ameaças de reabsorção. Manifestação livre
e desimpedida, imagens que correm segundo o declive do terreno, ou que se
modificam segundo a superfície de projeção ou a flutuação dos sentidos.
Entremeando
conhecimentos diversos, os artistas contemporâneos, aqui representados por 19
criadores, não têm limites ao pensar a forma de apresentar suas questões
através de experiências que ultrapassam imagens e sons, rompem fronteiras,
pulam cercas, derrubam muros e sobem em paredes. Nos fluxos das práticas do
pensamento estruturaram-se complexos entrecruzamentos criativos. Poesia,
abstrações gráficas, ficções do real e resistência política marcam essa
produção que se caracteriza, sobretudo, por misturar as regras nesse “jogo
entre todos os homens de todas as épocas.”16
(Endnotes)
1. MARTIN, 2006, p. 25.
2.
HOBSBAWM, 1995.
3. Na
década de 1960, cada byte de memória economizado significava também economia de
dinheiro; vários foram os hardwares e softwares que adotaram padrões com formas
reduzidas de armazenamento. As datas em alguns sistemas antigos eram
armazenadas com apenas dois dígitos para indicar o ano. Na virada do ano 2000,
temeu-se que um possível erro de lógica fizesse os computadores retrocederem
100 anos – ao invés de registrar a passagem para 2000, retornariam para 1900,
causando grandes complicações. Houve um forte investimento para corrigir essas
programações e o bug do milênio não passou de um episódio de alarmismo
apocalíptico.
4. MEIGH-ANDREWS, 2006, p. 21.
“[...] technological development in related
areas of broadcast television, consumer electronics, hardware and computer
software, video surveillance and emerging technologies such as thermal imaging,
magnetic resonance imaging (MRI), and so on, all had an influence on the aesthetic
development of video art.”
5. MARTIN, 2006, p. 6.
6. MEIGH-ANDREWS, 2006, p. 9.
6. MEIGH-ANDREWS, 2006, p. 9.
7. MARTIN, 2006.
8. MARTIN, 2006, p. 54.
9. MARTIN, 2006, p. 6.
10. DELEUZE,
2007, p. 178. Em Cinema II: Imagem-Tempo, Deleuze aborda a potência do
falso, na qual a vontade decisória se liberta das aparências e da verdade para
reafirmar-se como potência criadora.
11. AZZI, [2010], p. 4. http://www.artemov.net/revista.php?idRevistaEdicao=10&page=4
12 .
Aqui entendida como a articulação de conflitos entre imagens, sons e ideias na
justaposição da montagem.
13.
“O próprio poder se tornou pós-moderno. Isto é, ondulante, acentrado (sem
centro), em rede, reticulado, molecular. Com isso, o poder, nessa sua forma
mais molecular, incide diretamente sobre as nossas maneiras de perceber, de
sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar.” PELBART, 2007, p.57.
14.
BAMBOZZI, 2008. http://www.lucasbambozzi.net/index.php/textos-articles/o-video-explodido-e-seus-estilhacos-pairando-sobre-nos
15 .
MINELLI, 2011.
16. FILIPOVIC, 2008, p. 175.52 53 54 55 56 57